sábado, 18 de agosto de 2012

A mulher que não sabia dizer "- Eu te amo."

Ele não respeitou sua intuição e deixou a porta da rádio aberta. Mesmo com o vestígio do que estava por vir ter acontecido há poucos minutos antes, na sala do café. Ele tinha esperança em tudo na vida, principalmente em que coisas terríveis nunca haveriam de acontecer. Era sexta-feira, ela devia ter alguma coisa mais importante pra fazer, não perderia seu precioso tempo parando na sua frente e apontando a metralhadora no seu rosto. Mas era sexta-feira, dia em que não se tem nada a perder. Faltava uma hora para o fim do expediente, então não se tinha absolutamente nada a perder.
E é claro que ela entrou.
Ele tinha com ela uma história tão complexa quanto à forma de definir seu carinho pela mesma. Suas expressões apontavam lá pelos 60 e poucos anos. Sempre séria. Sempre mórbida. Implacável. Os corredores da empresa eram lotados de burburinhos sobre seu “jeitinho” ímpar de ser. Jogando por baixo, as bruxas das histórias infantis teriam inveja de tais lendas. É jornalista, já foi chefe. Invejável currículo.
O destino dos dois se cruzou quando ele ainda tomava remédios. Ou se entupia deles. Um garoto entupido de remédios e de medo recebeu certo dia a notícia que ela, justo ela, seria sua nova chefe por quatro meses. E por quatro meses ela lhe comprou almoço quando precisava trabalhar até tarde, contou suas histórias de superação (ela também, um dia, já se entupiu de remédios), aconselhou a ele uma terapia regressiva, reclamou bastante quando o serviço atrasava, o deixou dormir bem na sua frente enquanto conversavam – uma das consequências das medicações. E, assim, os quatro meses se passaram rápido e ele se descobriu mais forte. Mais resistente, mais rápido, mais vivo. Como pode uma pessoa cercada de lendas tão estranhas ser capaz de tornar o seu semelhante mais forte? E mais! Sem nenhuma palavra de carinho? Sem nenhum “- Eu te amo.”?
Como ela nunca foi casada, tendo dotes tão lindos para cuidar do outro?
O próximo encontro emblemático dos dois se deu quatro anos depois. Inevitavelmente, ele abraçou a mesma profissão de sua outrora chefe. Eram colegas de serviço e de canudo, agora. Mais uma vez ela entrara na rádio para lhe dizer palavras de incentivo e sucesso. Falou por quase uma hora. E foi letal. Ele percebeu que alguma coisa havia mudado em seu discurso. Não era um discurso para um menino que se entupia de remédios. Era um discurso para um homem. Para um filho que estava deixando o lar. Duríssimo de ouvir, mas verdadeiro e sincero. A frase final daquela conversa ainda ecoa nos seus momentos de solidão: “- Sabe qual é o seu verdadeiro problema? Você tem medo de ser feliz.” Mas ele estava mais forte, afinal, quatro anos é um bocado de bagagem. Soube absorver os golpes e aproveita-los da melhor forma possível. A faculdade havia lhe ensinado preciosas lições sobre “emissor” e “receptor”. Ele enxergou amor em tudo aquilo. Mesmo sem ouvir o tal “- Eu te amo”.
E agora, oito meses depois, ele sabia que estava para começar mais um discurso. E sabia que ia ser pesado. Pesado como nunca fora antes. Ele estava com medo, passava por um período de fragilidade única. Estava completamente desarmado de coragem e força de vontade. Lembrou-se do filme do Batman que assistiu recentemente e só teve tempo para suplicar aos céus que não saísse tão avariado como seu herói das telas. Mas foi impossível.
O discurso não era mais desejando sucesso, e sim sobre o que estava fazendo para alcançá-lo. Por que não escrevia uma matéria jornalística? Por que não fazia um concurso público para sua área? Por que não dava a cara pra bater na iniciativa privada? Por que não saía de frente do computador? Por que não otimizava seu tempo procurando informações que o fizessem crescer ao invés de procurar o último lançamento de sua banda favorita? Por que não se mexia? Queria passar a vida inteira operando uma mesa de som? Foi pra isso que correu atrás de um diploma? Por que não tinha ambição? Por que não tinha uma vida?
Por quê? Por quê? Por quê?
No começo, ele tentou desesperadamente se esquivar dos golpes. Lutou bravamente com o pouco de força que lhe sobrava no corpo. Mas aos poucos foi se rendendo. Ele não tinha resposta para nenhuma daquelas perguntas, não sabia o que dizer, não conseguia ainda encarar de frente sua antiga mestra. Abaixou a cabeça e deixou que lhe golpeasse. Uma, duas, três, quatro. Cinco vezes. Veio uma vontade forte de chorar, mas não daria aquele desprazer para quem só lhe ensinou a ser forte. Como se não bastasse, assim como no filme do Batman, ela o agarrou pelas costas e o ergueu para cima.
“- Quando eu soube que você estava entrando para a faculdade de jornalismo, eu disse que não era o seu perfil. Você não tem perfil nenhum pra ser jornalista.”
E quebrou-lhe a coluna. Ao meio. E depois saiu.
Ficou sem ar. Foi ao banheiro, lavou o rosto, acendeu um cigarro no jardim. Esperou ansiosamente as 17h. Chegou em casa com muita dificuldade. Estava gravemente ferido, e a ciência, por mais avançada que fosse avançada, não tinha curativos para aquelas feridas. Feridas internas. Feridas na alma.
Refugiou-se no único cômodo do barracão abaixo da sua casa e ficou ali por horas. Sentia uma raiva e um ódio mortal subindo-lhe as veias. Raiva dela e ódio dele mesmo. Ele sabia que ela estava certa, e isso era muito pior do que toda a surra que levou. Pensou em vingança, em mostrar do que era capaz. Pensou em desistir de tudo e voltar pra sua terra. Mas, por fim, pensou somente nela. E nas coisas boas que ela o passou em todos esses anos. E em como os dois, bem no fundo, eram até parecidos.
Ela não sabia dizer “- Eu te amo.”. Nunca soube. Cada um tem sua história e deve haver um por que. O fato é que ela, por muitas vezes, tentou dizer isso a ele da sua forma. Como ela achava certo. Ou, talvez, como fizeram com ela um dia.
Levantou-se e foi dormir, mesmo com aquelas dores horríveis. Algumas delas, tinha certeza, não iam curar nunca. Seria pra sempre manco e repleto de cicatrizes.
Ela lhe apareceu em sonho naquela mesma noite. Voltou a conversar com ele como na primeira vez, com a voz doce e zelosa da chefe que conversava com o menino entupido de remédios. Ele estava deitado em uma maca. Ela sentou-se na cadeira ao lado e encarou-o com seriedade.
“- É por isso que eu nunca casei. Agora você entende? Eu escolhi viver sozinha. É muito difícil ouvir verdades.”
"- E dizer verdades... é fácil?"
Ela sorriu compreensiva, no cantinho da boca. Mas foi o suficiente pra ele entender.
Fácil é dizer “- Eu te amo.”

Um comentário:

Analu Oliveira disse...

se essa citação não aparecesse no texto eu mesma a faria!

“- Quando eu soube que você estava entrando para a faculdade de jornalismo, eu disse que não era o seu perfil. Você não tem perfil nenhum pra ser jornalista.”

ME lembro bem dessa frase! saudade do programa com quase 20" que tinha q ser editado!